terça-feira, 5 de agosto de 2008

O rei comilão

Eu amei essa matéria. Está na revista Gula deste mês... Espero que gostem!


Dom João e dona Carlota Joaquina: o casal vivia em casas separadas e quem preparava a comida, para ele, nos últimos tempos de Brasil, era o português José da Cruz Alvarenga

Dom João VI não gostava só de frangos, como o retrata a caricatura. Também comia carnes e apreciava arroz de chouriço

POR J.A.DIAS LOPES
FOTOS CODO MELETTI


Muitos brasileiros lembram de dom João VI apenas como um príncipe regente ou rei que devorava seis frangos por dia, três no almoço e três na merenda. Realmente, o soberano, cuja transferência para o Rio de Janeiro, a 7 de março de 1808, junto com a corte, representou o início da formação de nossa nação, tinha apetite devorador. C.J. Dunlop, no livro Rio Antigo, volume 3 (Editora Rio Antigo, Rio de Janeiro, 1960), observa que ele cortava os frangos com as mãos sem usar talher, comendo os pedaços junto com fatias de pão torrado, sem manteiga. "Completava a refeição com quatro ou cinco laranjas da Bahia", afirma Dunlop. Alguns autores dizem que eram mangas. No final, limpava as mãos num guardanapo que, após sujar, jogava no chão. Elogiava o preparo das aves e, por isso, afeiçoou-se ao cozinheiro José da Cruz Alvarenga, vindo com ele de Portugal. Proferia uma frase simpática. "Só o Alvarenga sabe fazer os frangos como eu gosto", afirmava dom João.

Os galináceos sempre foram uma paixão dos Braganças, ou seja, de toda a sua família. Era afeição vinda de dom João IV (1608-1656), primeiro rei da dinastia, apreciador de galinha albardada - envolvida com gemas e claras batidas, frita na manteiga e temperada com açúcar. Alcançou o neto dom Pedro II (1825-1891), imperador do Brasil, fanático por canja de macuco. Uma das poucas exceções seria dom Miguel, irmão de nosso dom Pedro I. Entretanto, sua aversão, que carece de comprovação histórica, porque se baseia apenas na voz do povo, confirmaria a regra. Os mexericos diziam que ele não era filho de dom João, e sim do relacionamento da mulher deste, dona Carlota Joaquina, com o cocheiro João dos Santos. Portanto, não teria o sangue dos Braganças, apenas o Bourbon da mãe. Especulações à parte, a predileção gastronômica de dom João e de seu clã provocou transtornos no Rio de Janeiro. Os comerciantes reclamaram que a mantearia (casa onde se guarda tudo o que pertence à mesa) e a ucharia real (despensa, especialmente para carnes) arrematavam todos os galináceos nos mercados e feiras, prejudicando o fornecimento aos demais fregueses. Segundo Laurentino Gomes, no bestseller 1808 (Editora Planeta, São Paulo, 2007), só em 1820, um ano antes de o rei de Portugal, Brasil e Algarves retornar a Lisboa, a corte consumiu diariamente 513 galinhas, frangos, pombos e perus e 90 dúzias de ovos. Isso significou o total de 20.000 aves e 33 dúzias de ovos por ano e custou ao governo cerca de 900 contos de réis (quase R$ 50 milhões). É bem verdade que nem tudo era consumido pela corte. A maior parte das aves e ovos ia para os criados e soldados a seu serviço, bem como a ordens religiosas, orfanatos, asilos e hospitais. Pernas, coxas, sobrecoxas, peitos e miúdos de galinha constituíam ingredientes obrigatórios no combate às doenças e na dieta de parturientes e convalescentes.

Entretanto, dizer que dom João gostava apenas de frangos é fazer-lhe uma caricatura. Inigualável guloso, ele traçava igualmente com prazer outras comidas, como mostram as menções a gêneros que a historiadora Ana Roldão, do Museu Imperial de Petrópolis, encontrou nos cadernos de mantearia e ucharia real do Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro, e na Torre do Tombo, em Lisboa. Ele também apreciava as carnes bovina e suína, assim como embutidos e caças de pena e pêlo. Luiz Edmundo, na obra A Corte de D. João no Rio de Janeiro, em três volumes (Imprensa Nacional, Rio de Janeiro, 1939), conta que também adorava arroz de chouriço. Certamente apreciava outros pratos à base desses grãos preciosos. Quando dom João chegou ao Brasil, nossa terra era uma vasta colônia extrativista. Uma de suas poucas indústrias - se é que podemos chamá-la assim - era uma descascadora de arroz autorizada a funcionar em 1766, no Rio de Janeiro, pela coroa portuguesa.

Segundo a lenda, ao longo dos 13 anos, um mês e 19 dias vividos no Rio de Janeiro, inicialmente como príncipe regente, depois na condição de rei de Portugal, Brasil e Algarves, dom João VI, homem tímido e indeciso (ainda que tais características às vezes se transformassem em ponderação e prudência), calado e contido nas emoções, só chorou duas vezes. A primeira no velório de sua mãe, a rainha dona Maria I, a Louca, falecida no Rio de Janeiro. A outra, ao regressar a Lisboa, quando se despediu da cozinheira negra que preparava sua comida diária. Ao conceder-lhe uma pensão vitalícia, movido pela gratidão gustativa, os olhos do comilão dom João se encheram de lágrimas. Esse episódio, porém, não encontra comprovação documental. A elaboração da comida real era coisa de homem. A parafernália de utensílios em metal e bastante pesados - caldeirões, panelões, tachos, potes, peneiras, alguidares, almofarizes, fôrmas para bolo, fumeiros, trempes, tripés, prateleiras e fogões a lenha, as enormes moringas de barro, gamelas e pilões de madeira para descascar arroz, triturar o grão do café e fazer paçocas - exigia braços musculosos em seu manuseio.

Que se saiba, o "mestre dos cozinheiros" ou "das cozinhas", como se dizia na época, embarcado em Lisboa com o então príncipe regente e seu acompanhante na nau capitânia Príncipe Real, chamava-se Vicente Paulino. Fez-lhe a comida com os ingredientes viáveis na travessia: peixe seco ou em salmoura, paio, chouriço, presunto, toucinho, carnede- sol, galinha e porco, temperados com alho, cebola, alecrim, pimenta, azeite, vinagre e sal. Morrendo em 1813, sucedeu-lhe o igualmente português José da Cruz Alvarenga. Não foi uma substituição tranqüila. Torres, outro chef que trabalhava na corte, disputou tenazmente o posto. Nobres e plebeus acompanharam o embate. "Ontem faleceu Vicente Paulino, mestre das cozinhas em cujo lugar hão de haver grandes cacheiradas entre Torres e o Alvarenga, porque ambos querem campar", escreveu Luiz Joaquim dos Santos Marrocos, Bibliotecário Real, em sua correspondência particular.

Derrotado na disputa, Torres se conformou e aceitou o cargo de ajudante de Alvarenga. "Isso tudo se encontra documentado em nosso acervo", assegura o historiador Carlos Ditadi, pesquisador do Arquivo Nacional, do Rio de Janeiro. Dom João VI hesitou muito em voltar para Portugal. Adorava o Brasil, sentia-se bem no Rio de Janeiro e, para completar, receava o mar e as viagens marítimas. Tentou enviar em seu lugar o filho dom Pedro, mas recuou. Sem alternativa, pois necessitava enfrentar a revolução liberal eclodida no Porto e a seguir em Lisboa, embarcou de volta a 26 de abril de 1821. Alvarenga também não queria regressar. Teve mais sorte. Aposentou-se da cozinha e continuou a viver no Rio de Janeiro, "amancebado com uma negra formosa", conforme a voz do povo.
ANTIQUARIUS
Alameda Lorena, 1884, Jardins, tel. (11) 3082-3015, São Paulo, SP.
Publicada na edição 188 (Junho/2008) da Gula

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